FANTASIAS MUNDO FANTÁSTICO

Genero Infantil:

Autor: Igidio Garra

Prefácio: Fantasias do Cotidiano

No caos silencioso do dia a dia, onde a rotina parece tecer uma teia de previsibilidade, há um convite sutil para enxergar além do comum. Objetos que nos cercam uma chave esquecida na gaveta, um espelho empoeirado no canto do quarto, ou até mesmo uma xícara lascada de café carregam em si o potencial de transcender sua função ordinária. São portais disfarçados, prontos para nos conduzir a aventuras extraordinárias, onde o trivial se transforma em mágico e o cotidiano revela suas fantasias ocultas.

Este livro é uma celebração desses instantes em que o comum ganha vida. Cada história aqui contada transforma o familiar em algo inesperado, seja por um toque de magia, um lampejo de imaginação ou uma reviravolta do destino. Um guarda-chuva pode não apenas proteger da chuva, mas abrir caminhos para mundos esquecidos. Um caderno velho pode sussurrar segredos de gerações passadas. Esses objetos, tão simples à primeira vista, tornam-se narradores de jornadas que desafiam a lógica e despertam a curiosidade.

Convidamos você, leitor, a olhar com novos olhos para os itens que compõem sua vida. Permita-se imaginar: e se aquele relógio parado na prateleira pudesse contar o que viu? E se a porta rangente de sua casa fosse, na verdade, o limiar de uma grande aventura? Que estas páginas inspirem você a encontrar o extraordinário escondido nas dobras do cotidiano, cada objeto, por mais simples que seja, guarda a promessa de uma história esperando para ser vivida.

Capítulo 1: O Relógio Que Parou o Tempo

Uyara nunca ligou muito pro relógio de bolso. Ele tava lá, jogado na gaveta do criado-mudo da avó Judith, no meio de novelos de lã e recibos amarelados. Era uma peça véia, de latão meio gasto, com números romanos no mostrador e ponteiros parados, travados às três e dezessete. Ela achou o relógio numa tarde chuvosa, enquanto mexia na casa que herdou depois que a avó faleceu. O tique-taque, que já não funcionava há anos, parecia zoar da correria da vida dela, sempre na luta contra o tempo.

Curiosa, Uyara pegou o relógio e olhou contra a luz. O vidro tava riscado, mas ainda brilhava um pouco. Ela girou a coroa, sem esperar nada. De repente, o mecanismo rangeu, como se tivesse acordado de um sono brabo. Um clique seco ecoou, e os ponteiros começaram a rodar pra trás. A sala ao redor dela deu uma tremida. As paredes de gesso viraram tábuas de madeira, o sofá novinho virou uma poltrona de veludo meio acabada, e o cheiro de café fresquinho foi trocado por um aroma de lavanda e cera de vela.

Uyara piscou, sem entender nada. Tava na mesma casa, mas não era a casa dela. As cortinas eram de renda, o rádio tocava uma música dos anos 40, e uma mulher, igualzinha à avó Judith quando jovem, atravessou a sala com uma bandeja de chá. "Você chegou bem na hora, querida", disse a mulher, com um sorriso que Uyara reconhecia das fotos antigas. Antes que ela pudesse falar qualquer coisa, o relógio na mão dela vibrou, quente, e os ponteiros giraram mais rápido ainda.

De repente, ela não tava mais na sala. Tava numa rua de paralelepípedos, com um céu cinzento. Carroças passavam, e o ar tinha cheiro de carvão. O relógio, agora no bolso dela, pulsava como se tivesse vida. Uyara sacou que cada giro dos ponteiros a levava mais pro passado, e o relógio parecia decidir pra onde ir. Mas por quê? E como ela ia voltar?

Enquanto tentava entender, um cara de chapéu e sobretudo chegou perto. "Você não devia tá aqui", ele falou baixo, olhando pro relógio com os olhos arregalados. "Esse relógio... ele não é deste tempo." Antes que Uyara pudesse perguntar quem ele era, o relógio vibrou de novo, e o mundo ao redor dela se desfez em luz.

Quando a luz se apagou, Uyara se viu num campo aberto, com capim alto balançando ao vento. O céu tava carregado, mas não chovia. O relógio no bolso dela ainda pulsava, mais fraco agora, como se tivesse cansado. Ela olhou em volta, tentando entender onde tava. Não tinha mais rua de paralelepípedos, nem carroças. Só o cheiro de terra molhada e um silêncio que pesava. Longe, dava pra ver uma casinha de madeira, com fumaça saindo da chaminé.

Uyara enfiou a mão no bolso e tirou o relógio. Os ponteiros tavam parados de novo, mas o latão tava quente, quase queimando a palma da mão dela. Ela pensou nos pais, Edmur e Agnes, que sempre contavam histórias da avó Judith, de como ela era cheia de segredos e falava de coisas que ninguém entendia direito. Será que esse relógio era um desses segredos? E o Franz, o irmão dela, que vivia zoando que a avó era meio bruxa? Se ele visse isso, ia pirar.

Enquanto tentava decidir se ia até a casa ou mexia no relógio de novo, um barulho de galhos quebrando fez ela virar a cabeça. Um garoto, mais ou menos da idade dela, saiu do meio do capim. Ele usava roupas estranhas, tipo calça de lã e uma camisa que parecia feita à mão. "Você é de onde?", ele perguntou, com um sotaque que Uyara não reconheceu. Antes que ela pudesse responder, ele apontou pro relógio. 

"Isso aí... já vi um igual. Minha mãe disse que é amaldiçoado. Traz gente de lugares que não existem." Uyara franziu a testa. "Amaldiçoado? Tá louco? Isso era da minha avó!" Mas o garoto não parecia estar brincando. Ele deu um passo pra trás, como se tivesse medo dela. "Não mexe nisso de novo", ele avisou. "A última pessoa que usou esse relógio sumiu. E ninguém nunca achou."

O coração de Uyara disparou. Ela olhou pro relógio, que parecia zumbir baixinho, como se tivesse ouvindo a conversa. Será que era perigoso mesmo? Ou o garoto tava só tentando assustar ela? Antes que pudesse decidir, o chão tremeu de leve, e o relógio esquentou outra vez. Uyara segurou ele com força, mas uma voz na cabeça dela, que parecia a da avó Judith, sussurrou: "Confia no tempo, querida. Ele sempre sabe pra onde te levar."

Capítulo 2: O Sussurro do Campo

Uyara ficou parada, com o relógio quente na mão, enquanto o garoto a encarava com olhos desconfiados. O vento balançava o capim alto, e o silêncio do campo parecia gritar mais alto que qualquer barulho da cidade. Ela olhou pra casinha ao longe, com a fumaça subindo devagar da chaminé, e sentiu um arrepio. Algo naquela cena parecia familiar, como se ela já tivesse ouvido falar daquele lugar nas histórias da avó Judith.

"Qual é teu nome?", Uyara perguntou, tentando quebrar a tensão. O garoto hesitou, coçando a nuca. "Tomás", ele respondeu, ainda mantendo distância. "E tu, de onde veio? Não é daqui, né? Essa roupa..." Ele apontou pra calça jeans e o moletom dela, que deviam parecer coisa de outro mundo pra ele. "Eu sou Uyara. E, tipo, eu não sei como vim parar aqui. Foi esse relógio." 

Ela levantou a peça de latão, que agora tava fria de novo, como se nada tivesse acontecido. Tomás arregalou os olhos e deu outro passo pra trás. "Já disse, isso é problema. Minha mãe contava que um relógio assim apareceu na vila há anos. Um cara usou, e depois ninguém nunca mais viu ele. Só sobrou uma história de que ele viajou pro tempo errado e ficou preso."

Uyara engoliu seco. A ideia de ficar presa num lugar que ela nem sabia onde era não tava nos planos. Ela pensou no Franz, que provavelmente tava jogado no sofá de casa, vendo algum filme idiota, e nos pais, Edmur e Agnes, que deviam estar preocupados se ela não voltasse logo. "Tá, mas como eu faço pra voltar?", ela perguntou, tentando não soar desesperada.

Tomás deu de ombros. "Não sei. Mas minha mãe talvez saiba. Ela entende dessas coisas esquisitas. Vem comigo." Ele virou e começou a andar na direção da casinha, sem esperar pra ver se Uyara ia seguir. Ela hesitou, olhando pro relógio. A voz da avó Judith ecoou na cabeça dela de novo: "Confia no tempo." Sem muita escolha, ela guardou o relógio no bolso e foi atrás dele.

Chegando na casa, Uyara viu que era ainda mais simples por dentro. Uma mesa de madeira tosca, umas cadeiras, e um fogão a lenha crepitando no canto. Uma mulher de uns quarenta anos, com um lenço na cabeça, mexia uma panela. Quando viu Uyara, ela parou, o rosto ficando sério. "Onde achou esse relógio, menina?", perguntou, sem rodeios. Uyara explicou tudo: a gaveta da avó Judith, o relógio que começou a girar sozinho.

A sala que mudou, a rua de paralelepípedos, e agora esse campo. A mulher, que se apresentou como Louisa, ouviu em silêncio, os olhos fixos no relógio. "Esse troço não é só um relógio", ela disse, por fim. "É uma chave. Mas ninguém sabe direito pra onde ela abre as portas. Minha avó dizia que ele escolhe quem vai carregar e aonde vai levar. E parece que ele escolheu pra ti."

"Mas por que pra mim?", Uyara perguntou, o coração apertado. Louisa suspirou e apontou pra uma cadeira. "Senta. Vou te contar o que sei. Mas já aviso: nem tudo que o relógio mostra é bonito. E nem todo lugar que ele te leva é seguro." Enquanto Louisa começava a falar, contando histórias de viajantes do tempo que sumiram e de outros que voltaram mudados, Uyara sentiu o relógio esquentar no bolso outra vez. 

Ela olhou pra baixo e viu os ponteiros girando, lentos, como se estivessem esperando um comando. Antes que pudesse perguntar qualquer coisa, a casa tremeu, e o chão pareceu se abrir sob os pés dela. O chão sumiu por um instante, e Uyara sentiu o estômago virar. Tudo ficou escuro, como se ela tivesse mergulhado num poço sem fundo. O relógio no bolso dela pulsava forte, quase como se estivesse vivo, e a voz da avó Judith ecoou de novo na cabeça dela: 

"Confia no tempo." Antes que pudesse se segurar em alguma coisa, o mundo voltou a se formar, mas agora era diferente. Ela tava numa cidadezinha que parecia saída de um cartão-postal antigo. Casas de pedra com telhados inclinados, uma praça com uma fonte no meio, e pessoas vestidas com roupas que lembravam os anos 20. Homens de boina e mulheres com saias longas passavam por ela, alguns lançando olhares curiosos. 

Uyara se olhou e viu que suas roupas tinham mudado: o moletom e a calça jeans agora eram um vestido azul simples, com um cinto na cintura e sapatos de couro gastos. O relógio, ainda no bolso, tava quieto, mas ela sentia ele ali, como se estivesse observando. "Beleza, e agora?", ela murmurou pra si mesma, tentando não surtar. Lembrou do que Louisa tinha dito sobre o relógio ser uma chave, escolhendo pra onde levar quem o carregava. 

Mas escolher por quê? E pra quê? Uyara pensou nos pais, Edmur e Agnes, que deviam tá loucos de preocupação, e no Franz, que provavelmente ia rir da cara dela se soubesse que ela tava pulando no tempo por causa de um relógio velho. Enquanto caminhava pela praça, tentando entender onde tava, uma voz a chamou. "Ei, moça!" Era uma menina, uns 15 anos, com tranças e um avental sujo de farinha. 

"Tu tá perdida? Não te vi por aqui antes." Uyara hesitou, mas a menina parecia amigável. "É, tipo, eu não sou daqui. Tô tentando entender onde cheguei. Sabe que ano é esse?" A menina franziu a testa, como se a pergunta fosse a coisa mais estranha do mundo. "É 1923, ué. Tu tá bem?" Uyara forçou um sorriso, sentindo o coração acelerar. 1923. Isso era quase um século antes do tempo dela. 

Antes que pudesse responder, a menina apontou pro bolso onde o relógio tava. "Que brilho é esse aí? Tá escondendo o quê?" Uyara cobriu o bolso com a mão, instintivamente. "Nada, só... uma coisa da minha avó." A menina, que disse se chamar Rauane, não pareceu convencida, mas não insistiu. "Vem comigo, então. Minha tia tem uma pensão ali na esquina. Tu pode descansar e me contar o que tá acontecendo. Tô vendo que tem história aí."

Uyara seguiu Rauane, sem saber se era uma boa ideia. A pensão era um prédio estreito, com cheiro de pão fresco e café. A tia de Rauane, uma mulher robusta chamada Dona Xênia, recebeu Uyara com um olhar desconfiado, mas ofereceu um quarto e uma xícara de chá. Enquanto tomava o chá, Uyara tentou organizar os pensamentos. O relógio tinha levado ela de um campo perdido pra uma cidade dos anos 20. 

E agora? Será que ele ia continuar jogando ela de um tempo pro outro sem explicação. De repente, o relógio esquentou de novo. Uyara olhou pra baixo e viu os ponteiros girando rápido, tão rápido que pareciam borrar. Antes que pudesse avisar Rauane ou Dona Xênia, a sala da pensão começou a tremeluzir, e o chão pareceu derreter. "Não de novo!", Uyara gritou, segurando o relógio com força. Mas já era tarde. 

O mundo ao redor dela desabou em luz, e ela sentiu que tava caindo outra vez. A luz engoliu tudo, e Uyara sentiu o corpo leve, como se flutuasse num vazio. O relógio no bolso pulsava, quente, quase como se estivesse guiando ela por aquele nada. A voz da avó Judith, tão clara quanto um sino, sussurrou de novo: "Confia no tempo." Então, com um solavanco, o mundo se solidificou ao redor dela.

Uyara caiu de joelhos numa areia fofa, o ar salgado batendo no rosto. O som de ondas quebrando encheu os ouvidos, e o céu acima era de um azul tão vivo que quase doía os olhos. Ela se levantou, limpando a areia das mãos, e olhou em volta. Estava numa praia, com dunas ao fundo e um mar que se estendia até o horizonte. Não tinha sinal de cidade, nem de pessoas. Só o relógio no bolso, agora morno, e uma sensação esquisita de que  já tinha visto aquele lugar antes.

Ela tirou o relógio e olhou pros ponteiros. Eles tavam parados de novo, mas o mostrador parecia brilhar com um leve tom dourado, como se tivesse absorvido a luz do sol. "O que tu quer de mim?", ela murmurou pro relógio, como se ele pudesse responder. Lembrou das palavras de Louisa, lá no campo, sobre o relógio ser uma chave que escolhia quem carregar e pra onde levar. Mas por que uma praia deserta? E que tempo era esse?

Enquanto caminhava pela areia, tentando achar algum sinal de vida, Uyara viu uma garrafa meio enterrada perto de uma rocha. Era de vidro verde, com um rolha de cortiça, e parecia velha, mas intacta. Curiosa, ela se abaixou e pegou a garrafa. Dentro, tinha um pedaço de papel amarelado. Ela abriu a rolha com cuidado e puxou o papel, que tava dobrado e com a tinta meio apagada. Era uma carta, escrita numa letra caprichada, mas tremida.

"Querida Uyara", começava a carta. O coração dela parou por um segundo. Como alguém podia saber o nome dela? Ela continuou lendo: "Se tu tá lendo isso, o relógio te escolheu. Ele não obedece às regras do tempo, mas tem um propósito. Não confia em todo mundo que encontrar, mas busca quem carrega a marca do ponteiro. Eles vão te guiar. Cuida do relógio, porque ele é mais do que parece. Com amor, Judith."

Uyara ficou olhando pro papel, o peito apertado. Era a letra da avó Judith, sem dúvida. Mas como? Como a avó podia ter deixado uma mensagem numa garrafa, numa praia que Uyara nunca tinha visto, num tempo que ela nem sabia qual era? Ela guardou a carta no bolso, junto com o relógio, e olhou pro horizonte. A marca do ponteiro... o que isso queria dizer?

De repente, ela ouviu um grito vindo das dunas. Era uma voz jovem, meio desesperada. Uyara correu na direção do som, a areia dificultando os passos. Quando chegou ao topo de uma duna, viu um menino, uns 12 anos, preso numa rede de pesca que parecia enrolada de propósito. Ele se debatia, mas quanto mais se mexia, mais a rede apertava. "Ei, calma!", Uyara gritou, descendo pra ajudar. 

O menino parou e olhou pra ela, os olhos arregalados. "Tu é quem?", ele perguntou, ofegante. "Me tira daqui!" "Eu sou Uyara. Relaxa, vou te soltar." Ela começou a desfazer os nós, mas percebeu que a rede era estranha, quase como se tivesse sido feita pra prender alguém. Enquanto trabalhava, o menino olhou pro bolso dela, onde o relógio brilhava de leve. "Tu tem um desses?", ele perguntou, a voz tremendo. 

Eu vi um igual... com um homem que passou por aqui. Ele disse que o relógio ia mudar tudo. Antes que Uyara pudesse perguntar mais, o relógio esquentou de novo, e os ponteiros começaram a girar. Ela sentiu o chão tremer, e a praia começou a desmoronar, como se fosse feita de fumaça. "Não, agora não!", ela gritou, segurando a mão do menino. Mas o mundo já tava se desfazendo, e a luz voltou a engolir tudo.

Capítulo 3: A Cidade Sem Nome

A luz cegante dissolveu-se, e Uyara sentiu o chão firme sob os pés. O ar salgado da praia sumiu, trocado por um cheiro de fumaça e metal quente. Ela piscou, tentando entender onde tava. O menino que tava preso na rede não tava mais com ela, e a mão que segurava a dele agora apertava o vazio. O relógio no bolso pulsava devagar, como se tivesse gastado toda a energia. Uyara olhou em volta e viu que tava numa cidade, não era como nenhuma que ela conhecia.

Os prédios eram altos, com janelas quebradas e fachadas cobertas de fuligem. O céu tinha um tom alaranjado, como se o sol nunca se pusesse de verdade. Ruas estreitas se cruzavam, cheias de fios pendurados e carrinhos de metal que pareciam flutuar a poucos centímetros do chão. Pessoas passavam apressadas, usando máscaras estranhas que cobriam metade do rosto, e ninguém parecia notar ela. 

Uyara olhou pra si mesma e viu que suas roupas mudaram outra vez: agora usava um casaco cinza com botões grandes e botas pesadas, como se o relógio tivesse decidido que ela precisava se misturar. "Judith, o que tá acontecendo?", ela murmurou, pensando na carta da avó. A mensagem na garrafa falava de uma "marca do ponteiro", mas ela não fazia ideia do que isso significava. 

O relógio tava quieto agora, os ponteiros parados às 3:17, igual quando ela o encontrou na gaveta. Uyara pensou no Franz, que devia tá zoando ela na cabeça dele, e nos pais, Edmur e Agnes, que provavelmente tavam surtando em casa. Ela precisava descobrir como controlar o relógio e voltar. Enquanto caminhava por uma rua cheia de barraquinhas vendendo coisas esquisitas frascos brilhando, ferramentas que pareciam vivas, uma voz rouca a chamou. 

"Ei, tu aí! Onde achou essa relíquia?" Uyara virou e viu um homem velho, com uma barba rala e um olho coberto por um tapa-olho de couro. Ele apontava pro bolso dela, onde o relógio brilhava de leve. "É... era da minha avó", Uyara respondeu, cobrindo o bolso com a mão. O homem deu um passo mais perto, o olho bom brilhando de curiosidade. "Tua avó, é? Então tu é uma das escolhidas. Esse relógio não cai na mão de qualquer um. Já viu a marca do ponteiro?"

Uyara franziu a testa. "Que marca? Tô tentando entender isso tudo, mas ninguém explica direito." O homem riu, um som seco que parecia mais tosse. "A marca do ponteiro é o sinal de quem já viajou com ele. Olha aqui." Ele levantou a manga do casaco, mostrando uma cicatriz no pulso que parecia um ponteiro de relógio, gravada na pele como uma tatuagem.

"Meu nome é Elias", ele disse. "E se tu tá com esse relógio, é porque o tempo te quer pra alguma coisa. Vem comigo, vou te mostrar uma coisa." Uyara hesitou, lembrando do aviso da carta da avó Judith pra não confiar em todo mundo. Mas Elias parecia saber mais do que Louisa ou Rauane, e ela tava cansada de ser jogada de um lugar pro outro sem entender nada.

Elias a levou por becos tortuosos até uma portinha escondida numa parede coberta de musgo. Dentro, tinha uma sala pequena, cheia de relógios quebrados, mapas desenhados à mão e papéis espalhados. No centro, uma mesa com um globo que girava sozinho, brilhando com luzes que pareciam estrelas. "Isso aqui", Elias disse, apontando pro globo, "é o que o teu relógio usa pra navegar. Ele não te leva só pra outros tempos, mas pra outros mundos. 

E cada mundo tem suas regras. Uyara sentiu um frio na espinha. "Outros mundos? Tipo, não é só o passado?" Elias balançou a cabeça. "O tempo é maior do que tu imagina. Mas cuidado: o relógio escolhe o caminho, mas nem sempre te deixa voltar." Antes que ela pudesse perguntar mais, o relógio no bolso dela esquentou, e os ponteiros começaram a girar de novo. A sala tremeu, e o globo na mesa brilhou mais forte. 

"Segura firme!", Elias gritou, mas o chão já tava sumindo, e Uyara caiu na luz outra vez. A luz engoliu Uyara de novo, e o mundo girou como se ela estivesse dentro de um caleidoscópio. O relógio no bolso queimava, e ela segurou ele com força, como se isso pudesse impedir o que vinha pela frente. A voz da avó Judith, suave mas firme, ecoou na cabeça dela: "Confia no tempo." Então, com um tranco, tudo parou.

Uyara abriu os olhos e se viu numa floresta densa, com árvores tão altas que os galhos escondiam o céu. O ar era úmido, cheirando a musgo e terra molhada. O som de pássaros estranhos enchia o ambiente, misturado com um zumbido baixo que parecia vir de todos os lados. Ela olhou pras roupas: o casaco cinza e as botas pesadas da cidade sem nome agora eram uma túnica leve, de um tecido que brilhava de leve, como se fosse feita de teia de aranha. 

O relógio, ainda no bolso, tava morno, os ponteiros parados mais uma vez. "Beleza, agora é uma floresta?", Uyara murmurou, tentando manter a calma. Ela pensou no Elias, na cidade cheia de fumaça, e no globo que girava sozinho. Ele tinha falado de outros mundos, não só outros tempos. Será que o relógio tinha levado ela pra um lugar que nem existia no planeta dela? A ideia fez o estômago dela revirar. 

Ela queria o Franz ali, nem que fosse só pra ele zoar e aliviar a tensão, ou o Edmur e a Agnes, que sempre sabiam o que fazer quando as coisas ficavam complicadas. Ela tirou o relógio do bolso e olhou pra ele. A cicatriz que Elias mostrou, a tal "marca do ponteiro", ainda tava na cabeça dela. Uyara levantou a manga da túnica e olhou pro pulso. Nada. Nenhum sinal. "Se tu me escolheu, por que não me explica o que tá rolando?" 

Ela perguntou pro relógio, meio brava. Como resposta, o latão brilhou de leve, e os ponteiros tremeram, mas não se mexeram. Um barulho de passos leves fez ela virar. Entre as árvores, uma figura apareceu: uma mulher alta, com cabelos longos que pareciam mudar de cor com a luz. Ela usava uma roupa parecida com a de Uyara, mas com detalhes que brilhavam como estrelas. No pulso dela, Uyara viu uma cicatriz igual à de Elias, em forma de ponteiro. 

"Tu é a nova viajante", a mulher disse, a voz calma, mas com um peso que fez Uyara estremecer. "Eu sou Mira. O relógio te trouxe até mim." Uyara apertou o relógio contra o peito. "Como tu sabe disso? E onde eu tô? Isso aqui não parece... normal." Mira sorriu, mas não era um sorriso amigável. "Normal é uma palavra que não cabe onde o relógio te leva. Esse lugar é um entre-mundos, um ponto onde os tempos se cruzam. 

O relógio te escolheu pra consertar algo, mas ele não te conta o quê. Só te guia." "Consertar o quê?", Uyara perguntou, o coração disparado. "E por que eu? Só achei esse troço na gaveta da minha avó!" Mira se aproximou, os olhos fixos no relógio. "Judith, não é? Ela também carregou ele, há muito tempo deixou algo pra ti. Vem comigo." Mira levou Uyara por um caminho estreito na floresta, até a clareira onde uma árvore gigante crescia, raízes que pareciam pulsar com luz. 

No centro, havia um pedestal de pedra, e sobre ele, um livro velho, com capa de couro rachada. "Esse é o Livro dos Ponteiros", Mira disse. "Ele guarda as histórias de quem já usou o relógio. Tua avó escreveu uma página. Lê." Uyara abriu o livro com cuidado. As páginas eram cheias de letras estranhas, algumas brilhando, outras apagadas. Ela encontrou uma página com a letra da avó Judith, igual à da carta na garrafa. 

"Uyara, se tu tá lendo isso, o relógio te achou. Ele vai te levar pra lugares quebrados, tempos que não deviam existir. Mas cuidado: tem quem quer o relógio pra destruir, não pra consertar. Procura a marca do ponteiro. E não deixa ele te consumir no tempo." 

Antes que Uyara pudesse perguntar o que isso significava, o relógio esquentou de novo, e a clareira começou a tremer. Mira agarrou o braço dela. "Ele tá te chamando. Não resista, ou vai se perder!" Uyara tentou falar, mas o chão desabou, e a luz voltou, engolindo a floresta inteira.

Capítulo 4: O Tremor do Entre-Mundos

A luz se dissipou com um estalo, e Uyara caiu de cara num chão frio e duro. O ar tava pesado, com um cheiro estranho, meio metálico, meio queimado. Ela se levantou devagar, esfregando o cotovelo que bateu na queda. O relógio no bolso tava quente, mas os ponteiros tavam parados outra vez, como se quisessem dar um tempo pra ela respirar. Uyara olhou em volta e ficou de boca aberta.

Ela tava numa espécie de caverna, mas não era uma caverna comum. As paredes eram lisas, como se tivessem sido esculpidas por mãos humanas, e brilhavam com veios de luz azulada que pulsavam como veias. O teto era tão alto que sumia na escuridão, e o chão parecia feito de um material que refletia tudo, como um espelho preto. No centro, havia uma plataforma flutuante, com uma esfera brilhante girando lentamente no ar. Uyara sentiu um arrepio. 

Isso não parecia um lugar qualquer. Parecia... fora do tempo. As palavras de Mira ainda ecoavam na cabeça dela: "Um ponto onde os tempos se cruzam." Será que era isso? Um entre-mundos? Uyara pensou nos pais, Edmur e Agnes, que deviam tá desesperados, e no Franz, que provavelmente ia achar que ela tava inventando tudo isso. Mas o Livro dos Ponteiros, com a letra da avó Judith, tinha deixado claro que o relógio não tava brincando. 

Ele queria que ela consertasse algo, mas o quê? E como! Ela tirou o relógio do bolso e olhou pra ele. O latão brilhava com a luz azul da caverna, e os números romanos pareciam mais nítidos, quase como se quisessem dizer algo. "Tu me trouxe pra cá, agora me dá uma pista", ela murmurou, meio brava. Como resposta, o relógio vibrou de leve, e uma imagem passou pela cabeça dela: a cicatriz em forma de ponteiro no pulso de Elias e Mira. 

Uyara olhou pro próprio pulso de novo. Nada. "Se sou escolhida, cadê minha marca?", ela perguntou pro ar. Um som grave, como um trovão baixo, fez o chão tremer. Uyara guardou o relógio rápido e olhou pra plataforma. A esfera brilhante tava girando mais rápido agora, e as luzes nas paredes pulsavam no mesmo ritmo. De trás da plataforma, uma figura saiu das sombras. Era um homem, alto e magro, com um capuz que escondia o rosto. 

No pulso dele, Uyara viu a marca do ponteiro, mas essa parecia diferente, com linhas tortas, como se tivesse sido feita às pressas. "Tu é a nova portadora", ele disse, a voz fria como o chão da caverna. "Dá o relógio pra mim. Ele não pertence a ti." Uyara deu um passo pra trás, o coração disparado. A carta da avó Judith tinha avisado pra não confiar em todo mundo, e esse cara não parecia trazer boas intenções. "Quem é tu? E por que quer o relógio?"

O homem riu, um som que fez a pele dela arrepiar. "Meu nome não importa. O que importa é que o relógio tá quebrando o tempo, e tu tá piorando tudo. Entrega ele, e talvez eu te deixe voltar pra casa." Ele deu um passo à frente, e a esfera na plataforma brilhou mais forte, como se respondesse à presença dele. Uyara apertou o relógio contra o peito. "Não vou te dar nada. Esse relógio era da minha avó, e ela disse pra eu cuidar dele." 

O homem inclinou a cabeça, como se estivesse avaliando ela. "Judith, né? Ela também achou que podia controlar o relógio. E olha onde ela tá agora." As palavras bateram como um soco. Uyara pensou na avó, nas histórias que ela contava, no jeito que ela parecia saber mais do que dizia. Será que Judith ficou presa em algum lugar por causa do relógio? Antes que pudesse responder, o homem levantou a mão, e as luzes nas paredes explodiram em clarões. 

Uyara sentiu o relógio esquentar tanto que queimou a mão dela, e os ponteiros começaram a girar loucamente. "Não!", ela gritou, mas a caverna já tava desmoronando. A esfera na plataforma rachou, soltando faíscas, e o homem encapuzado sumiu nas sombras. O chão tremeu mais forte, e Uyara caiu de joelhos, segurando o relógio. A voz da avó Judith ecoou uma última vez: "Não deixa ele te consumir." 

Então, a luz voltou, mais forte que nunca, e o mundo se desfez ao redor dela. A luz explodiu em fragmentos, e Uyara sentiu o corpo sendo puxado como se estivesse preso numa correnteza. O relógio no bolso queimava, mas ela não soltava, mesmo com a dor. A voz da avó Judith, agora mais fraca, sussurrou: "Não deixa ele te consumir." Então, tudo parou com um solavanco, e Uyara caiu de bruços num chão coberto de folhas secas.

Ela tossiu, levantando devagar, o corpo dolorido. O ar era fresco, com cheiro de pinho e orvalho. Ao redor, uma floresta de árvores finas se estendia, com raios de sol cortando a névoa. As roupas dela tinham mudado de novo: agora era uma capa de lã grossa sobre uma túnica simples, com botas de couro que pareciam gastas por longas caminhadas. O relógio, ainda no bolso, tava morno, os ponteiros parados mais uma vez, como se nada tivesse acontecido.

"Tu tá me zoando, né?", Uyara murmurou pro relógio, limpando a terra das mãos. Ela pensou no homem encapuzado, nas palavras dele sobre o relógio quebrar o tempo. E a ameaça sobre a avó Judith... será que ela realmente ficou presa em algum lugar? Uyara sentiu um aperto no peito, pensando no Franz, que devia tá jogado no sofá de casa, e nos pais, Edmur e Agnes, que já deviam tá chamando a polícia. Ela precisava entender o relógio, ou nunca ia voltar.

Enquanto caminhava pela floresta, tentando achar um caminho, ouviu um som de metal contra metal, como espadas se chocando. Uyara parou, o coração acelerado. Ela se abaixou atrás de um tronco caído e espiou. Numa clareira, dois homens lutavam com espadas curtas, as lâminas brilhando ao sol. Um deles, mais jovem, usava uma armadura leve e tinha uma cicatriz em forma de ponteiro no antebraço. 

O outro, mais velho, parecia estar vencendo, com golpes rápidos e precisos. "Para!", o mais jovem gritou, recuando. "Eu não sei onde tá o relógio!" O mais velho riu, um som frio que lembrou Uyara do homem encapuzado. "Não minta, garoto. A marca no teu braço não engana. Entrega o relógio, ou não sobra nada de ti." Uyara sentiu o relógio esquentar no bolso. Ela olhou pra baixo e viu os ponteiros tremendo, como se quisessem avisar algo. 

A carta da avó Judith falava de procurar quem tinha a marca do ponteiro, mas também de tomar cuidado. Esse garoto parecia estar em apuros, mas será que era seguro ajudar? Antes que pudesse decidir, o mais velho levantou a espada pra dar um golpe final.

"Para com isso!", Uyara gritou, saindo de trás do tronco sem pensar. Os dois homens viraram pra ela, surpresos. O mais jovem arregalou os olhos, enquanto o mais velho estreitou os dele. "Outra portadora?", ele disse, abaixando a espada. "Que sorte a minha. Dois relógios num dia só." Uyara deu um passo pra trás, a mão no bolso, segurando o relógio. "Eu não te conheço, e tu não vai tocar nisso aqui." 

O jovem aproveitou a distração e correu pra trás de uma árvore, mas o mais velho não tirou os olhos de Uyara. "Tu não sabe o que tá carregando, menina. Esse relógio é uma praga. Entrega ele, e talvez eu te deixe viver." O relógio vibrou forte, e Uyara sentiu uma onda de calor subir pelo braço. Os ponteiros giraram tão rápido que pareciam borrar, e a floresta começou a tremeluzir. "Não de novo!", ela gritou, mas o mais velho avançou, a espada erguida. 

Antes que ele chegasse, o jovem gritou: "Segura o relógio e pensa na tua casa!" Uyara fechou os olhos, imaginando a sala de casa, o cheiro de café da Agnes, o Franz zoando no sofá. O chão sumiu, e a luz voltou, engolindo tudo. Mas, dessa vez, Uyara sentiu algo diferente, como se o relógio tivesse ouvido ela. A voz da avó Judith ecoou, quase inaudível: "Tu tá aprendendo." Então, o mundo se formou de novo, e ela caiu com um baque no chão.

Capítulo 5: O Reflexo de Casa

A luz se apagou, e Uyara caiu com um baque num chão que parecia familiar. O cheiro de café recém-passado e madeira polida encheu o ar, e ela abriu os olhos, o coração disparado. Estava na sala da casa da avó Judith, com o sofá velho, as cortinas de renda e a mesa onde Edmur sempre lia o jornal. Mas algo tava errado. A luz do sol entrando pela janela tinha um tom dourado demais, sobrenatural, e o silêncio era pesado, a casa tivesse prendido a respiração.

Uyara se levantou, ainda segurando o relógio, que tava morno no bolso. As roupas dela tinham voltado ao normal: o moletom e a calça jeans de antes. Ela olhou pros ponteiros, parados de novo às 3:17. "Tu me trouxe pra casa?", ela murmurou, meio desconfiada. A voz do jovem da floresta ecoava na cabeça dela: "Pensa na tua casa." Será que ela finalmente tinha conseguido controlar o relógio? Mas por que a casa parecia... diferente?

Ela caminhou até a cozinha, esperando encontrar Agnes mexendo nas panelas ou Edmur reclamando do café fraco. Mas a cozinha tava vazia. As xícaras tavam na pia, intocadas, e o relógio de parede marcava 3: viseis, igual ao do bolso. Uyara sentiu um frio na espinha. "Franz?", chamou, a voz ecoando pela casa. Nenhuma resposta. Ela subiu as escadas, o coração apertado, e abriu a porta do quarto do irmão. 

A cama tava arrumada, o que era esquisito, porque Franz nunca arrumava nada. De volta à sala, Uyara viu algo que não tinha notado antes: um espelho grande, pendurado na parede, que não tava lá antes. O vidro parecia ondular, como água, e refletia não a sala, mas um lugar estranho, com luzes piscando e sombras se movendo. Ela se aproximou, o relógio esquentando no bolso. 

No reflexo, viu uma figura familiar: a avó Judith, jovem, com o mesmo relógio de bolso na mão. "Uyara", a imagem disse, a voz clara apesar do espelho. "Tu tá quase entendendo. O relógio não te trouxe pra casa. Ele te trouxe pra um reflexo dela." "Um reflexo?", Uyara perguntou, o coração batendo forte. "O que isso quer dizer? Cadê minha casa de verdade?" A imagem de Judith sorriu, triste. "O relógio cria reflexos, pedaços de tempos que ele guarda. 

Tua casa tá aqui, mas não é a tua casa. Tu tá no entre-tempos, um lugar onde os portadores se encontram. Olha pro teu pulso." Uyara levantou a manga do moletom. Lá tava, finalmente: a cicatriz em forma de ponteiro, gravada na pele como uma tatuagem. Ela tocou a marca, sentindo um leve formigamento. "Isso significa que eu sou... o quê? Uma portadora de verdade?" Judith assentiu no reflexo. "Mas cuidado". Tem outros que querem o relógio. 

Eles vão te caçar, como caçaram a mim. Antes que Uyara pudesse perguntar mais, o espelho tremeu, e o reflexo da avó se desfez. O relógio no bolso vibrou, e os ponteiros começaram a girar. Uyara tentou segurar a imagem, gritando: "Não vai embora! Me explica como voltar!" Mas o chão da sala começou a rachar, e o cheiro de café foi engolido por um vento frio. Ela ouviu passos pesados atrás dela e virou, vendo uma sombra no canto da sala. 

Era o homem encapuzado da caverna, a cicatriz torta brilhando no pulso dele. "Tu não foge do tempo", ele disse, a voz cortante. "Dá o relógio, ou essa casa vai virar teu túmulo." Uyara correu pro espelho, sem saber por quê, e tocou o vidro. O relógio queimou no bolso, e o mundo explodiu em luz outra vez, levando a casa, o homem e tudo mais embora. A luz engoliu tudo, e Uyara sentiu o corpo sendo arrastado como se estivesse preso num redemoinho. 

O relógio no bolso queimava, mas ela não soltava, mesmo com a dor subindo pelo braço. A voz da avó Judith, agora fraca como um sussurro distante, repetiu: "Não deixa ele te consumir." De repente, o mundo parou com um tranco, e Uyara caiu num chão macio, coberto de musgo. Ela abriu os olhos, o coração na garganta. Estava numa clareira cercada por árvores tortuosas, com raízes que pareciam se mexer devagar, como se estivessem vivas. 

O céu acima era de um roxo escuro, com estrelas que brilhavam forte demais, quase como holofotes. O ar tinha um cheiro doce, mas estranho, que fazia a cabeça dela girar. Uyara olhou pras roupas: O moletom e a calça jeans tinham virado uma túnica longa, com bordados que brilhavam como as estrelas lá em cima. O relógio, ainda no bolso, tava quente, mas os ponteiros tavam parados, como se dessem um tempo. "Outra vez?", ela murmurou, meio zonza. 

O reflexo da casa da avó Judith ainda tava fresco na cabeça dela, assim como a imagem da avó no espelho e o homem encapuzado. A cicatriz no pulso dela, em forma de ponteiro, formigava de leve, como se lembrasse ela do que tava em jogo. Uyara pensou no Franz, que devia tá jogado no sofá, e nos pais, Edmur e Agnes, que provavelmente tavam desesperados. Ela precisava descobrir como voltar de verdade, não pra esses reflexos que o relógio criava. 

Ela tirou o relógio do bolso e olhou pra ele. O latão parecia pulsar com a luz das estrelas, e os números romanos brilhavam como se fossem feitos de fogo. "Tu me trouxe pra cá, agora me diz o que fazer", ela falou, quase implorando. Como resposta, o relógio vibrou, e uma onda de calor subiu pelo braço dela. Uyara olhou pro pulso e viu a cicatriz do ponteiro brilhar por um segundo, como se respondesse.

Um som de galhos quebrando fez ela virar. Entre as árvores, uma garota apareceu, mais ou menos da idade dela, com cabelos curtos e olhos que pareciam refletir o céu roxo. Ela usava uma roupa parecida com a de Uyara, e no pulso tinha a mesma cicatriz em forma de ponteiro. "Tu é a nova portadora, né?", a garota disse, a voz firme, mas com um toque de curiosidade. "Eu sou Lira. Vi o brilho do teu relógio de longe."

Uyara hesitou, a mão apertando o relógio. "Como tu sabe disso? E onde eu tô agora?" Lira deu um meio sorriso e apontou pro céu. "Isso aqui é um dos nós do tempo, um lugar onde os fios do relógio se cruzam. Ele te trouxe porque tá tentando te ensinar algo. Mas também tá te testando." Ela mostrou o pulso com a cicatriz. "Essa marca significa que tu aceitou o chamado. Mas não significa que tu vai sobreviver a ele."

"Surviver?", Uyara repetiu, o estômago revirando. "O que tu quer dizer? Tô só tentando voltar pra casa!" Lira balançou a cabeça. "O relógio não deixa ninguém voltar até terminar o que começou. Ele tá consertando rupturas no tempo, e tu é a ferramenta. Mas tem outros, como o encapuzado, que querem usar ele pra quebrar tudo de vez." Uyara lembrou do homem da caverna e da casa, com a cicatriz torta. "Ele disse que o relógio é uma praga. Que tá quebrando o tempo."

Lira franziu a testa. "Ele é um dos Caçadores. Eles querem o relógio pra controlar os nós do tempo. Se conseguirem, podem apagar tempos inteiros. Tua avó Judith sabia disso. Por isso ela te passou o relógio." Antes que Uyara pudesse perguntar mais, o chão tremeu, e as estrelas no céu pareceram piscar. O relógio no bolso dela esquentou tanto que ela quase deixou ele cair. 

Lira agarrou o braço dela. "Ele tá te chamando de novo! Pensa num lugar seguro, rápido, ou ele vai te jogar em qualquer canto!" Uyara tentou imaginar a casa dela, o cheiro de café, o Franz zoando, mas o relógio vibrou mais forte, e o mundo desabou em luz outra vez, apagando a clareira e Lira.

Capítulo 6: O Labirinto de Sombras

A luz se desfez com um estalo, e Uyara caiu num chão frio e irregular, como se fosse feito de pedra lascada. O ar era seco, com um leve cheiro de mofo e algo metálico que irritava o nariz. Ela se levantou, tateando no escuro, o coração batendo tão alto que parecia ecoar. O relógio no bolso tava quente, quase queimando, mas os ponteiros tavam parados de novo. Uyara tentou se orientar, mas a escuridão era tão densa que mal dava pra ver a própria mão.

"Beleza, onde tu me jogou agora?", ela murmurou pro relógio, a voz tremendo um pouco. As palavras de Lira ainda rodavam na cabeça dela: rupturas no tempo, Caçadores, a avó Judith sabendo de tudo. Uyara sentiu a cicatriz do ponteiro no pulso formigar, como se respondesse ao pensamento. Ela pensou no Franz, que devia tá zoando em casa sem ideia do que tava rolando, e nos pais, Edmur e Agnes, que provavelmente tavam virando a cidade atrás dela. 

A ideia de nunca voltar apertava o peito. Um brilho fraco começou a surgir nas paredes ao redor, como se a pedra estivesse acordando. Uyara viu que tava num corredor estreito, com paredes cobertas de símbolos estranhos, meio relógio, meio mapa estelar. O chão descia em espiral, como um labirinto. As roupas dela tinham mudado de novo: agora era um manto cinza, com capuz, que parecia feito pra se misturar nas sombras. 

"Tá, relógio, tu tá me deixando com cara de vilão de filme", ela brincou, tentando aliviar a tensão. Enquanto seguia o corredor, os símbolos nas paredes começaram a brilhar mais forte, pulsando no ritmo do relógio no bolso. Uyara tirou ele pra olhar. O latão parecia vivo, refletindo a luz dos símbolos, e os números romanos tavam mais nítidos, quase como se quisessem contar uma história. De repente, ela ouviu um sussurro, não na cabeça, mas vindo do corredor.

"Portadora...", a voz dizia, arrastada, como se viesse de muito longe. Uyara parou, o corpo tenso. "Quem tá aí?", perguntou, tentando soar mais corajosa do que tava. O sussurro virou uma risada baixa, e uma figura apareceu no fim do corredor. Era uma mulher, magra e alta, com olhos que brilhavam como as estrelas da clareira anterior. No pulso dela, a cicatriz do ponteiro parecia pulsar com luz própria. 

"Eu sou Veda", ela disse, a voz suave, mas com um tom que fez Uyara desconfiar. "Tu tá perdida, não é? O relógio te trouxe pro Labirinto de Sombras. Poucos saem daqui." "Labirinto?", Uyara repetiu, apertando o relógio. "Por que ele me trouxe pra cá? E tu é o quê? Amiga ou mais uma querendo esse troço?" Veda sorriu, mas não respondeu direto. "O relógio tá te testando, Uyara. Esse labirinto é onde os portadores provam se merecem carregar ele. 

Mas cuidado: as sombras aqui não são só escuridão. Elas ouvem. E caçam. Uyara sentiu um arrepio. As paredes pareciam se mexer, como se as sombras realmente tivessem vida. "Como eu saio daqui?", perguntou, tentando manter a voz firme. Veda apontou pro corredor, onde os símbolos brilhavam mais forte. "Segue os sinais do relógio. Eles vão te guiar. Mas não confia em tudo que vê. O labirinto muda pra te enganar."

Antes que Uyara pudesse perguntar mais, o relógio esquentou no bolso, e os ponteiros começaram a girar loucamente. As sombras nas paredes se esticaram, formando mãos que pareciam querer agarrar ela. Veda sumiu no escuro, a voz ecoando: "Corre, portadora!" Uyara disparou pelo corredor, seguindo os símbolos brilhantes, o coração na garganta. O chão tremia, e as sombras rugiam atrás dela, como se o próprio labirinto quisesse devorá-la. 

O relógio pulsava, e ela sentiu que, se não encontrasse a saída, nunca mais ia ver a luz. Uyara correu pelo corredor, o coração batendo tão forte que parecia querer pular do peito. As sombras nas paredes se contorciam, esticando braços que raspavam a pedra e tentavam agarrar o manto dela. O relógio no bolso pulsava como um segundo coração, e os símbolos brilhantes nas paredes pareciam guiar ela, piscando em um ritmo que acompanhava os batimentos do relógio. A voz de Veda ainda ecoava na cabeça dela: "Segue os sinais do relógio." Mas as palavras da avó Judith também tavam lá, alertando pra não confiar em tudo.

O corredor se dividia em três caminhos, cada um com símbolos diferentes. Um tinha desenhos que pareciam ponteiros de relógio, girando em espiral. Outro mostrava linhas que lembravam mapas estelares. O terceiro era só escuridão, sem nenhum brilho. Uyara parou, ofegante, sentindo as sombras se aproximarem. O relógio esquentou tanto que ela teve que tirá-lo do bolso. Os números romanos brilhavam, e os ponteiros apontavam pro caminho dos ponteiros em espiral.

"Tá, vou confiar em ti", ela murmurou pro relógio, escolhendo o caminho. Assim que entrou, o corredor atrás dela desabou, as sombras rugindo como se estivessem furiosas. Uyara correu mais rápido, os pés escorregando na pedra lisa. O caminho ia ficando mais estreito, e o ar tava cada vez mais pesado, como se ela estivesse respirando fumaça. De repente, o corredor abriu numa câmara circular, com um teto abobadado cheio de símbolos que brilhavam como um céu estrelado.

No centro da câmara, havia um pedestal de pedra, e sobre ele, um relógio de bolso idêntico ao dela, mas maior, quase do tamanho de um prato. Ele flutuava, girando devagar, e emitia um zumbido baixo que fazia o chão tremer. Uyara se aproximou, o próprio relógio vibrando no bolso como se respondesse. "O que é isso?", ela perguntou pro ar, sentindo que tava perto de alguma resposta.

Uma voz grave cortou o silêncio. "Tu chegou longe, portadora." Uyara virou e viu o homem encapuzado da caverna e do reflexo da casa, a cicatriz torta brilhando no pulso dele. Ele tava parado na entrada da câmara, segurando uma corrente com elos que pareciam feitos de sombra. "Mas aqui é o fim da linha. Entrega teu relógio, e eu te poupo." Uyara apertou o relógio contra o peito, o coração disparado. "Por que tu quer isso? O que esse relógio faz de verdade?" 

O homem riu, o som ecoando pela câmara. "Ele é a chave pra consertar o tempo... ou pra destruí-lo. E eu não sou de consertar coisas." Ele puxou a corrente, e as sombras da câmara se ergueram, formando figuras que pareciam pessoas, mas com olhos vazios. Uyara olhou pro relógio flutuante no pedestal. Algo nela dizia que ele era importante, talvez a chave pra sair do labirinto. 

Ela pensou na avó Judith, na carta que falava de consertar rupturas, e no Franz, que provavelmente zoava ela na cabeça dele sem saber do perigo. "Tu não vai ter ele", ela disse, a voz mais firme do que sentia. Correu pro pedestal, mas as sombras avançaram, bloqueando o caminho. O relógio no bolso dela esquentou tanto que queimou a mão, e os ponteiros giraram loucamente. 

O relógio flutuante respondeu, brilhando mais forte, e os símbolos no teto explodiram em luz. Uyara sentiu uma onda de energia subir pelo corpo, como se o relógio estivesse emprestando força pra ela. "Pensa na tua casa!", a voz da avó Judith ecoou, clara como nunca. 

Uyara fechou os olhos, imaginando a sala, o cheiro de café da Agnes, o Edmur lendo jornal. As sombras gritaram, e o homem encapuzado avançou, mas o chão da câmara rachou. O relógio flutuante soltou um clarão, e Uyara sentiu o mundo desabar de novo, a luz engolindo tudo enquanto ela segurava o relógio com toda a força.

Capítulo 7: O Peso do Tempo

A luz se dissolveu com um zumbido agudo, e Uyara caiu num chão duro, o impacto tirando o ar dos pulmões. O relógio no bolso tava tão quente que parecia derreter o tecido, mas os ponteiros tavam parados, como se tivessem desistido de girar. Ela abriu os olhos, ofegante, e viu que tava numa espécie de mercado ao ar livre, com barracas de madeira e pano esticadas sob um céu cinzento. O ar cheirava a especiarias, couro e algo doce que lembrava mel. 

Pessoas passavam apressadas, falando numa língua que Uyara não entendia, mas que soava antiga, como nas histórias que a avó Judith contava. Ela se levantou, verificando as roupas: agora usava uma túnica longa com mangas largas e um cinto de corda, como se fosse parte daquele lugar. A cicatriz do ponteiro no pulso formigava, e Uyara sentiu o peso do relógio no bolso, como se ele tivesse ficado mais pesado. 

A câmara do labirinto, o relógio flutuante e o homem encapuzado tavam frescos na cabeça dela. Ele queria destruir o tempo, e ela tava no meio disso sem saber como parar. "Beleza, e agora, relógio? Tu me joga num mercado?", ela murmurou, olhando pros lados. Pensou no Franz, que devia tá jogado no sofá de casa, e nos pais, Edmur e Agnes, que provavelmente tavam loucos de preocupação. 

A voz da avó Judith, falando pra não deixar o relógio consumir ela, parecia mais distante agora, como se o próprio tempo estivesse engolindo as palavras. Enquanto caminhava entre as barracas, tentando não chamar atenção, Uyara notou um velho sentado num tapete, cercado de relógios quebrados e engrenagens espalhadas. Ele usava um turbante desbotado e tinha uma cicatriz de ponteiro no pulso, igual à dela, mas mais desgastada.

E como se tivesse carregado o peso do tempo por décadas. Ele ergueu os olhos e fixou o olhar nela. "Tu é a portadora nova", ele disse, a voz rouca. "Senta aqui, menina. O relógio te trouxe por um motivo." Uyara hesitou, lembrando do aviso da avó pra não confiar em todo mundo. Mas o velho parecia diferente do encapuzado, mais cansado que perigoso. "Como tu sabe quem eu sou?", perguntou, sentando no tapete. O velho sorriu, mostrando dentes tortos. 

Meu nome é Amir. Já fui portador, como tua avó Judith. A cicatriz no teu pulso diz tudo. Mas tu tá em perigo. O relógio tá te levando pros nós mais frágeis do tempo. "Nós frágeis?", Uyara repetiu, o coração apertado. "Tô tentando entender, mas esse troço só me joga de um lugar pro outro!" Amir pegou um relógio quebrado e girou uma engrenagem com os dedos. "O tempo tá rachado, menina. Cada salto que tu dá cria mais rachaduras. 

Os Caçadores, como aquele que te persegue, querem usar o relógio pra despedaçar tudo. Tua avó tentou consertar, mas pagou um preço. Uyara sentiu um nó na garganta. "Que preço? Ela tá viva?" Amir baixou os olhos. "Judith tá presa num reflexo, como o que tu viu. Ela sacrificou a liberdade dela pra proteger o relógio. Agora, ele escolheu pra ti. Mas tu precisa aprender a guiar ele, ou vai acabar como ela."

Antes que Uyara pudesse perguntar como, o relógio no bolso vibrou, e o mercado inteiro pareceu tremer. As barracas balançaram, e as pessoas gritaram, correndo em pânico. Amir agarrou o braço dela. "Eles tão vindo! Os Caçadores sentem o relógio. Pensa num lugar que tu conhece bem, rápido!" Uyara tentou imaginar a casa dela, o cheiro de café, o Franz rindo, mas o relógio esquentou tanto que ela gritou de dor. 

Uma sombra escura, como a do labirinto, cresceu no meio do mercado, e o homem encapuzado apareceu, a corrente de sombras na mão. "Tu não escapa, portadora!", ele rugiu. Uyara correu, puxada por Amir, mas o relógio girou os ponteiros, e o mundo desabou em luz mais uma vez, apagando o mercado e o velho. A luz rasgou o mundo, e Uyara sentiu o corpo girar como se estivesse preso numa tempestade. 

O relógio no bolso queimava, o calor subindo pelo braço, e ela segurou ele com força, mesmo com a dor. A voz da avó Judith, quase sumindo, sussurrou: "Guia o relógio, Uyara." Então, com um baque, ela caiu num chão de terra batida, o ar cheio de poeira e cheiro de fumaça. Ela tossiu, levantando devagar, o corpo moído. Estava num vilarejo, com casas de barro e telhados de palha, o céu avermelhado como se um incêndio tivesse acabado de passar. 

As roupas dela tinham mudado de novo: agora usava uma saia longa e uma blusa de linho, com um lenço amarrado no cabelo. O relógio no bolso tava quente, mas os ponteiros tavam parados, como se dessem um tempo pra ela entender onde tava. "Tu tá brincando comigo, né?", ela murmurou pro relógio, limpando a poeira das mãos. As palavras de Amir ecoavam na cabeça dela: o tempo rachado, a avó Judith presa num reflexo, os Caçadores querendo destruir tudo.

Uyara sentiu a cicatriz do ponteiro no pulso pulsar, como se respondesse ao medo dela. Ela pensou no Franz, provavelmente zoando no sofá de casa, e nos pais, Edmur e Agnes, que deviam tá desesperados. Precisava aprender a guiar o relógio, como Amir disse, ou nunca ia sair dessa. Enquanto caminhava pelo vilarejo, viu que tava vazio, como se todo mundo tivesse fugido. As casas tavam com portas abertas, e algumas tinham marcas de queimado nas paredes.

Uyara parou diante de uma praça pequena, onde um poço de pedra parecia o único ponto intacto. No parapeito do poço, havia uma inscrição que brilhava com a mesma luz dos símbolos do labirinto. Ela se aproximou e leu: "O tempo guarda, mas também devora. Escolhe com sabedoria, portadora." Antes que pudesse entender, o relógio vibrou no bolso, e o chão tremeu. Uyara olhou em volta e viu sombras se formando no horizonte, como fumaça viva. 

O homem encapuzado surgiu no meio da praça, a corrente de sombras na mão, os olhos brilhando sob o capuz. "Tu tá ficando boa em fugir", ele disse, a voz cortante. "Mas o relógio é meu. Entrega ele, ou esse vilarejo vai virar cinzas." Uyara deu um passo pra trás, a mão apertando o relógio. "Por que tu quer isso? O que tu ganha destruindo o tempo?" O homem riu, a corrente se retorcendo como uma cobra. "O tempo é uma prisão. Eu vou libertar o que tá preso. E tu não vai me impedir."

Ela tentou pensar na casa dela, como Amir mandou, mas o relógio esquentou tanto que ela gritou, quase deixando ele cair. Os ponteiros giraram, e a inscrição no poço brilhou mais forte. Uyara sentiu uma onda de energia, como na câmara do labirinto, e o relógio pareceu responder. "Guia ele", a voz da avó Judith ecoou, mais clara. Uyara fechou os olhos, imaginando não a casa, mas a avó Judith, jovem, segurando o relógio, como no espelho.

O vilarejo tremeu, e as sombras avançaram, mas o relógio soltou um clarão que cegou tudo. Uyara sentiu o chão sumir, e a voz do encapuzado gritou algo que ela não entendeu. A luz engoliu o mundo de novo, mas dessa vez, Uyara sentiu que tava mais perto de algo, como se o relógio tivesse ouvido ela de verdade.

Capítulo 9: O Reflexo da Escolha

A luz se dissipou com um estalo, como se o próprio ar tivesse rachado. Uyara caiu de joelhos num chão frio e liso, o impacto reverberando nos ossos. O relógio no bolso pulsava, quente, mas não mais ardendo como antes. Ela abriu os olhos devagar, o coração disparado, e viu que estava numa sala circular, as paredes cobertas por espelhos que refletiam sua imagem em ângulos impossíveis. 

Cada reflexo mostrava uma Uyara ligeiramente diferente: uma com cabelo curto, outra com uma expressão mais velha, outra ainda segurando o relógio com confiança, como se soubesse exatamente o que fazer. O ar ali era pesado, carregado de um silêncio que parecia engolir qualquer som. A cicatriz no pulso dela formigava, e o relógio vibrava baixo, como se estivesse tentando falar. 

Uyara se levantou, a saia longa e a blusa de linho agora substituídas por uma roupa que parecia um misto de túnica e armadura leve, com detalhes metálicos que brilhavam como os símbolos do labirinto. Ela tocou a cicatriz e murmurou: "Tá, relógio, tu me trouxe pra cá. E agora?" Um dos espelhos à sua frente ondulou, como se fosse água, e a imagem de Judith apareceu, não como a avó que Uyara conhecia, mas jovem, com o mesmo olhar determinado.

Ela vira no reflexo do labirinto. Judith segurava o mesmo relógio, os ponteiros parados, e sua voz ecoou na sala, clara, mas com um tom de urgência: "Uyara, o relógio não é só um objeto. Ele é a chave dos nós do tempo. Tu tá num ponto de convergência, onde as escolhas pesam mais que tudo. Escolhe errado, e o tempo racha de vez." Uyara deu um passo em direção ao espelho, o coração apertado. "Avó, tu tá viva? O Amir disse que tu tava presa num reflexo. 

Como eu te tiro daí?" A imagem de Judith tremeluziu, como se estivesse lutando pra se manter visível. "Não é hora de me salvar, menina. O relógio te escolheu porque tu tem força. Mas os Caçadores sabem onde tu tá. Eles vão te caçar em cada nó, até pegarem o relógio." Antes que Uyara pudesse responder, um espelho do outro lado da sala estalou, e uma rachadura se formou, espalhando-se como teia de aranha. 

A sombra do homem encapuzado surgiu, não no espelho, mas na sala, real, a corrente de sombras se retorcendo em suas mãos. "Tu não pode se esconder nos reflexos, portadora", ele disse, a voz cortante como lâmina. "O tempo é frágil aqui. Entrega o relógio, ou vou despedaçar esse nó e tudo que ele segura." Uyara segurou o relógio com força, os ponteiros começando a girar lentamente. 

Ela olhou pros espelhos, vendo os reflexos dela mesma, cada um parecendo gritar algo diferente: fugir, lutar, se render. A voz de Judith ecoou de novo: "Guia o relógio, Uyara. Pensa no que te trouxe até aqui. No que te faz ser tu." Uyara fechou os olhos, tentando ignorar o medo. Pensou no Franz, na risada dele que sempre a fazia sentir que tudo ia ficar bem. Pensou nos pais, Edmur e Agnes, que sempre confiaram nela, mesmo quando ela mesma duvidava. 

E pensou na avó Judith, que sacrificou tudo pra proteger o relógio. O relógio vibrou mais forte, e Uyara sentiu uma onda de calor subir pelo braço, mas dessa vez não era dor — era como se o relógio estivesse se conectando a ela. Ela abriu os olhos e viu que os espelhos agora mostravam lugares diferentes: a casa dela, o mercado onde encontrou Amir, o vilarejo em chamas. Cada espelho era uma porta, um nó do tempo, como Amir tinha dito.

"Tu não vai pegar isso", ela disse pro encapuzado, a voz firme pela primeira vez. "Eu não sei tudo sobre o relógio, mas sei que ele é meu agora. E eu vou aprender a guiar ele." O homem riu, a corrente se erguendo como uma cobra pronta pra atacar. "Tu acha que pode controlar o tempo? Ele devora até os mais fortes, menina." Uyara não respondeu. Ela segurou o relógio com as duas mãos, sentindo os ponteiros girarem mais rápido. 

"Me leva pra onde eu preciso estar", ela sussurrou pro relógio, imaginando não um lugar, mas um momento: o instante em que Judith entregou o relógio pra ela, o olhar da avó cheio de confiança. O relógio soltou um clarão, e os espelhos explodiram em luz, engolindo a sala inteira. O encapuzado gritou, mas a voz dele foi abafada pela onda de energia. Uyara sentiu o chão sumir de novo, o corpo girando como se estivesse caindo por um vazio. 

Quando a luz se dissipou, ela estava num campo aberto, o céu azul e limpo, o ar cheirando a erva fresca. O relógio no bolso tava quente, mas calmo, como se tivesse encontrado um momento de paz. À frente dela, uma figura familiar estava de pé: Judith, jovem, segurando o mesmo relógio, mas com um sorriso que Uyara nunca tinha visto. "Tu tá começando a entender, menina", disse Judith. "Mas isso é só o começo. 

O tempo não é uma linha reta. Ele é um emaranhado, e tu precisa aprender a desfazer os nós sem quebrar tudo." Uyara deu um passo à frente, o coração disparado. "Avó, como eu te salvo? Como eu paro os Caçadores?" Judith balançou a cabeça. "Não é sobre me salvar agora. É sobre proteger o que o relógio guarda. Cada nó que tu conserta fortalece o tempo. Cada nó que tu quebra deixa os Caçadores mais perto. Escolhe com sabedoria, Uyara."

Antes que Uyara pudesse perguntar mais, o relógio vibrou de novo, e o campo começou a tremeluzir, como se fosse desmoronar. Judith estendeu a mão, como se quisesse tocar a neta, mas a imagem dela se dissolveu. "Guia o relógio!", foi a última coisa que Uyara ouviu antes de o mundo ser engolido pela luz mais uma vez.

Capítulo 10: O Emaranhado do Tempo

A luz se desfez com um som grave, como um trovão abafado, e Uyara caiu de pé num terreno pedregoso, o vento cortante batendo contra o rosto. O relógio no bolso pulsava suavemente, como se estivesse respirando junto com ela. As roupas dela mudaram novamente: agora usava um manto pesado, com capuz, que parecia feito pra proteger do frio. 

O céu acima era um turbilhão de nuvens escuras, girando como um redemoinho, e o ar cheirava a ozônio, como antes de uma tempestade. Ela olhou em volta e viu que estava numa encruzilhada, com três caminhos de pedra se estendendo em direções diferentes. Cada caminho levava a uma paisagem distinta: um brilhava com luz dourada, outro parecia engolido por neblina, e o terceiro tremeluzia com sombras que lembravam as do encapuzado. 

No centro da encruzilhada, havia uma estela de pedra, coberta de símbolos que pulsavam com a mesma energia do relógio. Uyara se aproximou e leu uma inscrição: "O tempo oferece caminhos, mas só um leva ao conserto. Escolhe, portadora, ou o emaranhado te engolirá." O relógio vibrou no bolso, e a cicatriz no pulso dela formigou, como se estivesse apontando pra estela. Uyara respirou fundo, tentando juntar as peças. 

As palavras de Judith ecoavam na cabeça: o tempo era um emaranhado, e ela precisava desfazer os nós. Mas como saber qual caminho era o certo? Ela pensou em Amir, que falou dos nós frágeis, e em Judith, que disse pra escolher com sabedoria. "Tá, relógio", ela murmurou, tirando ele do bolso. "Tu me trouxe até aqui. Me dá uma dica, vai." Os ponteiros do relógio giraram devagar, apontando pro caminho coberto de neblina. Uyara hesitou. 

A neblina parecia viva, se mexendo como fumaça, e algo nela dava um frio na espinha. Mas o relógio pulsou de novo, mais forte, como se insistisse. "Beleza, eu confio em tu... mais ou menos", ela disse, dando o primeiro passo em direção à neblina. Conforme avançava, a neblina se fechou ao redor dela, abafando os sons e deixando o mundo em silêncio. O caminho de pedra sumiu sob os pés, e Uyara sentiu como se estivesse andando no vazio. 

O relógio no bolso esquentou, e uma luz suave escapou dele, iluminando a neblina. Imagens começaram a surgir, como projeções: ela viu Franz rindo no sofá, Edmur e Agnes discutindo na cozinha, Judith jovem segurando o relógio. Mas havia outras imagens, estranhas, de lugares que ela nunca viu: uma cidade flutuante, um deserto de vidro, uma floresta onde as árvores pareciam feitas de luz.

"Esses são os nós?", ela perguntou em voz alta, sem esperar resposta. O relógio vibrou, e uma voz familiar, não de Judith, mas de Amir, ecoou na neblina: "Cada nó é um momento, um lugar onde o tempo tá preso. Tu precisa soltar ele, mas cuidado: os Caçadores sabem onde tu tá." Uyara sentiu um arrepio. O encapuzado. Ele sempre aparecia, como se o relógio o atraísse.

Antes que pudesse processar, a neblina se abriu, e ela se viu numa praça de pedra, cercada por estátuas quebradas que pareciam representar pessoas segurando relógios. No centro, havia um pedestal vazio, com marcas que combinavam com o formato do relógio dela. Uyara sentiu a cicatriz pulsar forte, como se o relógio quisesse que ela o colocasse ali. "Isso é uma armadilha, né?", ela murmurou, olhando pros lados.

Um riso frio cortou o ar, e o homem encapuzado surgiu do outro lado da praça, a corrente de sombras se arrastando no chão. "Tu tá aprendendo, portadora, mas ainda é lenta", ele disse, os olhos brilhando sob o capuz. "Esse nó é frágil. Entrega o relógio, e eu poupo esse lugar." Uyara apertou o relógio contra o peito. "Tu quer despedaçar o tempo. Por quê? O que tu ganha com isso?"

O encapuzado deu um passo à frente, a corrente se retorcendo. "O tempo é uma gaiola. Ele prende o que deveria ser livre. Eu vou quebrar os nós, um por um, até o emaranhado desmoronar. E tu não pode me parar." Ele ergueu a corrente, e as sombras se lançaram contra ela, rápidas como cobras. Uyara agiu por instinto. Fechou os olhos e pensou em Judith, no momento em que a avó lhe deu o relógio, na confiança daquele olhar. "Me guia!", ela gritou pro relógio.

Os ponteiros giraram loucamente, e uma onda de luz explodiu do relógio, empurrando as sombras pra trás. O encapuzado cambaleou, mas não caiu. "Tu acha que uma luzzinha vai me parar?", ele rosnou. Uyara correu pro pedestal, o relógio quente na mão. "Se isso é um nó, então vou consertar ele", ela disse, mais pra si mesma que pro encapuzado. Colocou o relógio no pedestal, e os símbolos na pedra brilharam intensamente. 

A praça tremeu, as estátuas racharam, e a neblina voltou, engolindo tudo. O encapuzado gritou algo, mas a voz dele foi abafada pela luz. Quando a neblina se dissipou, Uyara estava em outro lugar: uma biblioteca enorme, com prateleiras que subiam até um teto invisível. O relógio tava de volta no bolso dela, os ponteiros parados. Livros flutuavam no ar, abertos, mostrando imagens de momentos: guerras, festas, nascimentos, mortes. 

Um velho, não Amir, mas outro com a mesma cicatriz de ponteiro no pulso, apareceu entre as prateleiras. "Tu consertou um nó, portadora", ele disse, a voz calma. "Mas o emaranhado tá maior que tu imagina. Cada conserto te leva mais fundo. Tá pronta pra isso?" Uyara respirou fundo, o peso do relógio no bolso parecendo maior que nunca. "Não sei se tô pronta, mas não vou desistir. Como eu salvo minha avó? Como paro os Caçadores?" 

O velho sorriu, triste. "Judith fez o mesmo que tu: escolheu lutar. Pra salvar ela, tu precisa encontrar o nó onde ela tá presa. Mas cuidado, menina. Cada escolha racha o tempo um pouco mais." Antes que ela pudesse perguntar mais, o relógio vibrou, e os livros começaram a girar, as páginas virando sozinhas. 

A biblioteca tremeu, e Uyara sentiu o chão ceder. "Guia ele!", a voz de Judith ecoou, distante. Uyara segurou o relógio, fechando os olhos. "Me leva pro próximo nó", ela sussurrou. A luz voltou, engolindo tudo, e o emaranhado do tempo a puxou de novo.

Epílogo: O Tempo Restaurado

A luz se dissolveu com um suspiro suave, como se o próprio tempo tivesse respirado aliviado. Uyara abriu os olhos e se viu no quintal da casa dos pais, o cheiro de café misturado com o perfume das flores de laranjeira que Agnes tanto amava. O céu estava claro, um azul vibrante que parecia novo, como se o mundo tivesse sido lavado. O relógio no bolso dela estava frio, os ponteiros parados, mas agora com um brilho calmo, como se finalmente estivesse em paz.

Ela tocou a cicatriz no pulso, que não pulsava mais, apenas uma marca suave, como uma lembrança de tudo que viveu. As roupas dela eram as de sempre: jeans, camiseta e o tênis velho que Franz vivia zoando. Uyara olhou em volta, quase esperando que o encapuzado ou as sombras aparecessem, mas o quintal estava silencioso, exceto pelo som de risadas vindo da casa.

Dentro, encontrou Franz esparramado no sofá, jogando videogame, e Edmur e Agnes na cozinha, discutindo sobre a receita de bolo de laranja da avó Judith. Eles olharam pra ela com surpresa, como se Uyara tivesse aparecido do nada. "Menina, onde tu tava? Tô ligando pra ti faz horas!", disse Agnes, com um misto de alívio e bronca. Uyara sorriu, o coração leve. "Só... dando uma volta", respondeu, sem saber como explicar.

Mas então, no canto da sala, ela viu Judith. Não a Judith jovem dos reflexos, mas a avó que ela conhecia, com rugas e cabelo grisalho preso num coque frouxo. Judith segurava uma xícara de chá, os olhos brilhando com uma mistura de orgulho e alívio. "Tu fez bem, menina", disse, a voz suave, mas firme. "O tempo tá consertado. Os nós tão fechados, pelo menos por enquanto."

Uyara correu e abraçou a avó, sentindo o calor familiar que achava que tinha perdido. "Tu tá aqui! Como... como eu te tirei do reflexo?" Judith riu, apertando a neta. "Tu guiou o relógio, Uyara. Cada nó que tu consertou, cada escolha que fez com o coração, me trouxe de volta. O relógio precisava de alguém que acreditasse no tempo, não que quisesse controlá-lo."

Ela mostrou o pulso, onde a cicatriz de ponteiro ainda marcava a pele, mas agora parecia apenas uma memória, não uma corrente. "Os Caçadores não vão voltar. Não por agora. O relógio tá com tu, mas ele não vai te puxar mais, a menos que o tempo precise de novo." Uyara tirou o relógio do bolso e olhou pra ele. Era só um objeto agora, sem vibrações ou calor, mas ainda carregava o peso de tudo que ela viveu.

Franz levantou do sofá, franzindo a testa. "Que papo é esse de relógio? Vocês tão falando em código ou o quê?" Uyara riu, jogando uma almofada nele. "Nada que tu ia entender, mané." Edmur e Agnes se juntaram à risada, e pela primeira vez em semanas, Uyara sentiu que estava exatamente onde deveria estar.

Naquela noite, enquanto a família jantava junta, contando histórias e rindo, Uyara guardou o relógio numa caixinha de madeira que Judith lhe deu. "Ele vai ficar quieto agora", disse a avó, enquanto lavavam a louça. "Mas o tempo sempre tem seus emaranhados. Se ele chamar de novo, tu vai saber o que fazer."

Uyara assentiu, olhando pela janela. O céu estava estrelado, e o mundo parecia em paz. Ela pensou nos nós que consertou, nos caminhos que escolheu, e no peso que carregou. Mas agora, com a família ao seu lado e a avó de volta, sentia que o tempo, pela primeira vez, estava do seu lado.

E assim, com o relógio guardado e o coração cheio, Uyara sorriu, pronta pra viver os dias que viriam, sem medo do que o tempo pudesse trazer pela eternidade. Fim!

Gravataí, Rio Grande do Sul - Brasil. Construído Por: Igidio Garra® Todos os direitos reservados 
Desenvolvido por Webnode
Crie seu site grátis! Este site foi criado com Webnode. Crie um grátis para você também! Comece agora